Estava tudo pronto para que os países membros da Organização das Nações Unidas (ONU) assinassem neste domingo, em Nova York, o “Pacto para o Futuro”, um documento que formaliza a busca de consenso para lidar com desafios globais, com compromissos que incluem financiamento de infraestrutura de energia renovável a compromissos de desarmamento nuclear e contenção de armas letais autônomas provenientes de novas tecnologias.
Em meio às múltiplas guerras e violações de direitos humanos praticadas hoje no mundo, o pacto, um pleito pessoal do secretário-Geral António Guterres, alinha os países em um caminho de diálogo, considerando que as estruturas da organização estão desatualizadas — foram criadas para abarcar as dificuldades do mundo no meio do século passado.
O palco escolhido para a assinatura do pacto foi a Cúpula do Futuro, evento que ocorre pela primeira vez, na sede da organização, e que antecede a Assembleia Geral. De cara, o encontro foi desprestigiado pela maior parte dos chefes de estado que já virão para a Assembleia dias depois, e preferiram mandar seus representantes. Até mesmo Joe Biden, mandatário do país anfitrião, não viu razões para sair de Washington para Nova York. O presidente Lula preferiu não faltar. Chegou ainda no sábado acompanhado de oito ministros, assessores e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. A primeira-dama Janja da Silva havia chegado com ampla antecedência, na segunda-feira, 16, embora só tivesse agenda oficial na sexta-feira 20.
Dois dias antes do evento, porém, a Rússia resolveu tentar melar tudo. Exímios conhecedores das regras da organização, os diplomatas russos tentaram emplacar uma nova proposta de pacto para anular o que havia sido amplamente discutido entre Guterres e os países. Ao final, a tentativa de Moscou foi sufocada e o texto original foi votado e aprovado — sem a Rússia. Não que o “pacto” tenha qualquer efeito imediato sobre como vem sendo negociada a governança global. Ele estabelece bases para as discussões futuras. Mas, se não houve consenso sequer para a assinatura de um documento inofensivo e vago, as perspectivas para a discussão dos grandes temas que envolvem os países se tornam ainda mais frustrantes. O terror em Gaza, o clima saturado nos demais países do Oriente Médio, o conflito entre Rússia e Ucrânia e a incapacidade das democracias em frear o avanço da extrema-direita são assuntos candentes em que cada país tem e defende seus interesses — particulares e nem sempre com os propósitos mais íntegros.
Em seu discurso na Cúpula do Futuro, Lula enalteceu o pacto, afirmando que ele “aponta a direção a seguir”. Mas o fato é que a inoperância dos mecanismos de debate sobre a situação global, flagrante no exemplo russo, tornam ainda mais sensível o pleito inarredável do Brasil de conseguir a reforma do Conselho de Segurança da ONU (um ponto citado no pacto, sem medidas específicas). O presidente cogitava lançar mão do artigo 109 da carta de criação da ONU, que prevê que os países possam convocar uma assembleia para discutir a reforma. Embora esse dispositivo esteja presente desde a criação da organização, nenhum país jamais ousou acioná-lo. Lula seria o primeiro. Mas o clima pouco propício para esse tema deve fazer com que o presidente abrande o tom e fale da reforma de uma maneira mais genérica, sem ter de recorrer a um expediente inédito.
Depois de falar na cúpula, o presidente seguiu para a residência do embaixador do Brasil na ONU, Sérgio Danese, onde está hospedado. No final da tarde de domingo, se reuniu com sua assessoria internacional e com o escritor José Rezende Jr., que redige seus discursos, para acertar os últimos detalhes de sua fala na abertura da assembleia-geral, na próxima terça-feira. Há uma grande preocupação da equipe sobre como tratar, na fala do presidente, os incêndios criminosos no Brasil sem que isso soe como derrota para a política ambiental do governo. Nos bastidores, contudo, há quem defenda que o petista reconheça as dificuldades para justamente engajar o apoio internacional no combate aos extremos climáticos no Brasil. A ministra do Meio Ambiente e Mudança de Clima, Marina Silva, só confirmou de última hora sua ida a Nova York justamente por não estar segura de que seria viável viajar em meio à tragédia das queimadas. Mas acabou optando por comparecer.
O Brasil também tem tentado calibrar o discurso em relação à Venezuela. Diante do acirramento do conflito no país e do esperado fechamento do regime de Nicolás Maduro, a intenção da diplomacia brasileira e do governo é baixar a temperatura do assunto na ONU. O governo considera o tema de importância regional e distante do escopo das grandes questões globais a serem tratadas na Assembleia. O tema deve ser mencionado no discurso, mas sem grande ênfase. O Brasil não deverá adotar uma posição crítica a Maduro no discurso, optando pela neutralidade — diferentemente de outros países da região, como o Chile, que vêm fazendo críticas contundentes à fraude no processo eleitoral. Um diplomata defensor da posição moderada argumentou que de nada adiantaria desferir ataques públicos ao regime, a exemplo do presidente Gabriel Boric, sendo que críticas à parte, o problema continuaria lá. “Na volta para o Brasil, vamos passar de avião e lá embaixo vai continuar o problema, a Venezuela continuará ali”, afirmou.
O jornal Folha de S.Paulo revelou que os Estados Unidos e a Argentina farão um encontro bilateral para discutir a situação venezuelana, no dia 26, em Nova York, num contexto em que falta alinhamento entre os países da região sobre como fazer frente ao autoritarismo que se consolida em Caracas. O chanceler brasileiro Mauro Vieira foi chamado para a conversa, mas não aceitou participar. Um membro do Itamaraty afirmou à piauí que uma das razões para a negativa era o fato de Brasília não avaliar a ONU como plataforma ideal para discutir o tema — e que participar do encontro dificultaria ainda mais a interlocução com o país, que já é difícil. Outra fonte alegou que também pesou contra o fato de o convite ter partido do Departamento de Estado dos Estados Unidos — que, na visão da diplomacia brasileira, tem uma posição mais agressiva em relação à condução do problema do que a Casa Branca.