Novo livro investiga a ligação entre a internet e o machismo, abordando casos marcantes como o de Carolina Dieckmann e Marielle Franco.

Houve um tempo promissor, mas a misógina e a violência prevalecem na internet
No auge dos anos 90, as pesquisadoras feministas acreditavam que a internet teria um potencial libertador. O anonimato e a virtualidade do ciberespaço pareciam condições ideais para uma subversão do modelo patriarcal. No entanto, corta para 2021 e presenciamos a invasão de grupos misóginos em uma conferência online sobre gênero e internet. Esses grupos forçaram todas as participantes a testemunhar imagens brutais de violência contra as mulheres antes de serem expulsos do evento.
Mariana Valente, autora do livro “Misoginia na Internet”, argumenta que não há uma ruptura entre as cenas do passado e do presente. O entusiasmo ingênuo de confrontar as normas patriarcais na internet foi substituído pela constatação de que o espaço virtual é apenas mais um cenário onde a misoginia se reproduz. No entanto, Valente também defende que a internet pode ser um lugar para combatê-la.
Além de doutora em direito pela USP, Valente é professora na Universidade de St. Gallen, na Suíça, e diretora do Internet Lab. Seu livro percorre mais de uma década, abordando desde a sanção da Lei Carolina Dieckmann, em 2012, até a lei que pune a violência política contra mulheres, em 2021, que foi motivada pelo assassinato de Marielle Franco, três anos antes.
Neste livro de formato ensaio, Valente apresenta reflexões que vão além do debate jurídico sobre a violência contra a mulher. Ela costura casos emblemáticos, como os de Rose Leonel e Lola Aronovich, a fim de explorar a interseção da sociologia, política, ética e filosofia. Ao fazer isso, ela expõe como as histórias de violência contra essas mulheres moldaram o debate público, a legislação e a internet, ao mesmo tempo em que foram moldadas por essas instâncias.
A grande contribuição da obra é trazer a misoginia para o centro do debate atual sobre a regulação da internet. Valente mostra como a cobertura de casos como o de Carolina Dieckmann ignorava completamente a misógina envolvida na divulgação não autorizada de fotos íntimas. O assunto era tratado apenas como uma ameaça ao direito à privacidade, e a criação da lei com o nome da atriz pouco abordou questões de gênero.
“Faltava integração entre os debates: as políticas para a internet e aquelas contra a violência de gênero não se conversavam. Era preciso reconhecer a centralidade das tecnologias e a misoginia na regulação das plataformas”, diz Valente.
Embora tenham havido avanços nas respostas jurídicas à violência doméstica e sexual, a misoginia ainda é um tema de pouco interesse para plataformas e legisladores nos espaços de discussão sobre violações e moderação de conteúdo. Valente ressalta que a atenção ao tema esbarra na complexa definição do que é a misoginia, um conceito ainda abstrato para muitos.
Além disso, “Misoginia na Internet” dialoga com autoras que apresentam novas ideias sobre as opressões de gênero. A autora se opõe ao conselho frequente de que as mulheres evitem compartilhar fotos íntimas, lembrando o trabalho da antropóloga Beatriz Accioly Lins. Accioly Lins relata em sua pesquisa mulheres que enviam imagens íntimas voluntariamente, negociando sempre com os limites impostos por seus contextos.
Nessa perspectiva, Valente defende que não cedamos à ideia de que o comportamento sexual masculino é predatório, enquanto às mulheres cabem freios, precaução e controle. A autora também relata como a punição à sexualidade feminina pode ser severa, desde suicídios de adolescentes após a divulgação de fotos íntimas até sites brasileiros que ensinam o “passo a passo para estuprar jovens em festas”. Isso mostra que ainda há um longo caminho a percorrer no combate ao machismo.
Valente não poupa críticas ao Judiciário, recuperando decisões como a de um desembargador de Minas Gerais que defendeu a redução da indenização de uma vítima de divulgação de fotos íntimas, alegando que “a autora ao se exibir daquela forma sabia da possibilidade de divulgação (…). A imagem da autora na sua forma grosseira demonstra não ter ela amor-próprio e autoestima.”
Apesar de traçar um panorama das leis de proteção às mulheres no Brasil, Valente é clara em afirmar que não é o direito quem resolverá o problema da misoginia. Ela foge de respostas simples, como propostas punitivistas de criminalização, e defende que o país deveria fazer mais para prevenir e reparar a violência contra as mulheres nas esferas civil e monetária. Para ela, é melhor focar nas vítimas e buscar mudanças na sociedade do que apenas puni-las.
As conclusões de Valente são propositivas e carregam um tom otimista. Ela destaca que a morte de Marielle Franco, que foi um marco brutal, foi também uma ameaça concreta que desorganizou muitas iniciativas. No entanto, a autora acredita que é possível retomar propostas de mudança, sem estar em uma posição tão defensiva.