
Implicações criminais contra Jair Bolsonaro dividem especialistas
As implicações criminais contra Jair Bolsonaro nas investigações sobre a venda de joias que havia recebido enquanto presidente e no caso da “Abin paralela” dividem especialistas ouvidos pela Folha.
Por um lado, há a tese de que o ex-mandatário cometeu crimes em série nas duas situações, que estão sob apuração da Polícia Federal e da PGR (Procuradoria-Geral da República).
A compreensão jurídica de parte dos advogados é que os elementos indicam delitos na área criminal e ilícito civil que poderiam causar o impeachment por crime de responsabilidade, se ele ainda estivesse à frente do Executivo federal.
No caso da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) —que supostamente teria sido usada para investigar desafetos políticos, magistrados e jornalistas de 2019 a 2022—, a avaliação foi reforçada após o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), liberar uma gravação na última semana.
Trata-se de um encontro do ex-presidente com o então chefe da Abin, Alexandre Ramagem; o então ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), Augusto Heleno; e mais duas advogadas, num contexto em que discutiram maneiras para anular as acusações contra o senador Flávio Bolsonaro no caso da “rachadinha”.
Para parte dos especialistas, a investigação sobre a existência de um esquema de arapongagem na Abin poderia ainda ser inserida nos inquéritos que investigam se o ex-presidente participou de uma trama para dar um golpe de Estado após a derrota para o presidente Lula em 2022.
Por outro lado, há advogados que não veem provas suficientes no momento para incriminar o ex-presidente. Em relação às joias, eles divergem quanto a se os presentes milionários que Bolsonaro recebeu e depois tentou vender integrariam seu acervo pessoal ou o acervo público.
Já sobre a Abin, no caso da atuação em favor de Flávio, também existem diferentes entendimentos quanto a se reunião divulgada recentemente tem força para enquadrar Bolsonaro e os demais envolvidos em algum delito.
Há quem entenda que não existe até o momento uma prova definitiva para comprovar que o ex-mandatário fez algum movimento concreto para beneficiar o próprio filho. Essa é a avaliação do advogado Alberto Toron, que, apesar disso, não exime o ex-presidente de eventual responsabilidade política sobre o caso.
O advogado e doutor em direito criminal Ruiz Ritter diverge de Toron: “As conversas retratam um contexto de intenção em defender um interesse privado perante órgãos da administração pública valendo-se da qualidade de funcionário, no caso chefe do Executivo federal”.
Ele opina que a reunião também pode configurar um ilícito civil. “Os fatos em questão podem constituir um ato de improbidade administrativa, principalmente sob a perspectiva de desvio de finalidade em detrimento da eficiência da administração e prejuízo ao erário”.
A advogada e mestre em direito processual penal Maria Jamile José afirma que é legítimo um investigado se valer de todos os meios lícitos para se defender e comprovar que foi vítima de injustiça, mas acredita que Bolsonaro pode ter ido além.
O caso da Abin paralela está em um estágio de investigação menos avançado que o das joias, em que Bolsonaro já foi indiciado pela Polícia Federal sob suspeita de crimes de associação criminosa, lavagem de dinheiro e peculato/apropriação de bem público.
A advogada afirma que peculato é o delito aparentemente mais visível no caso: “Parece o mais nítido, que é justamente o ato de se apropriar, no exercício do cargo, de bens que tenha posse em razão do cargo. A meu ver, ao menos em tese, o delito está caracterizado”.
Já o advogado Fernando Capez, doutor em direito e procurador de Justiça aposentado, diz que, “em que pese todo o complicado processo de venda” das joias, não vê crime no caso.
Para embasar sua opinião, ele menciona um decreto de 2002 e uma decisão do TCU (Tribunal de Contas da União) sobre o tema que mencionam presentes que se caracterizam como “bens personalíssimos”.
“Um relógio doado ou uma joia tem o intuito de agradar a pessoa que foi presenteada, causando-lhe alegria e satisfação. Um relógio de pulso não é doado para ficar num arquivo público, por ser um bem de uso pessoal, o qual, quando cedido a uma pessoa especificamente, passa a ser personalíssimo”, diz ele.
Em relação ao caso da Abin, o professor e doutor em direito constitucional Ademar Borges afirma que é necessário aprofundar a investigação e manter a presunção de inocência, mas que, pelas notícias veiculadas, parece ter havido “o emprego de uma estruturação mais complexa, com a utilização de tecnologia, hierarquia, certa verticalização, o que indica que pode ter havido um delito de organização criminosa”.
Ele cita que informações de espionagem de autoridades, como ministros do STF, podem inserir o caso da “Abin paralela” em um contexto mais amplo, além do crime específico de interceptação ilegal.
“O que se supõe até agora é que havia um projeto autoritário em curso, com muitas projeções, ramificações. E aparecem indícios de que esse aparelhamento da Abin poderia ser um dos braços para o delito fim, o de abolição do Estado democrático de Direito”, opina.