
Discussão sobre a constitucionalidade da posse de drogas para uso pessoal ganha contornos interpretativos
A discussão sobre a constitucionalidade de um artigo da Lei de Drogas que considera crime a posse de entorpecentes para uso pessoal ganhou contornos interpretativos após a reação do Congresso Nacional sobre o tema que o STF (Supremo Tribunal Federal) julga desde 2015.
No entanto, apontam especialistas, a discussão deveria se resumir a dois temas principais: a natureza da infração de possuir drogas para consumo próprio (que atualmente é considerada crime) e qual a quantidade limite que distingue um usuário de um traficante.
O ponto central é o artigo 28 da lei 11.343, de 2006, que considera crime adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
Não são previstas penas de prisão, mas de advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Com o tempo, o Supremo restringiu essa discussão à maconha, droga que é objeto de uma ação que chegou à corte por meio de recurso. A decisão final será válida para todos os processos similares em tribunais do país.
A repercussão do que é julgado em setores religiosos e no Congresso levou ministros do Supremo a entrarem publicamente em atrito em mais de uma ocasião.
Em abril, o Senado aprovou uma proposta que inclui na Constituição a criminalização do porte e da posse de drogas. No dia 12 de junho, o texto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
Na última quinta-feira (20), antes de o Supremo retomar o julgamento do caso, o ministro Luís Roberto Barroso disse no plenário que havia recebido uma ligação do presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), dom Jaime Spengler, que se mostrava preocupado.
Barroso afirmou que Spengler foi “vítima de desinformação” sobre o julgamento. O presidente da corte então voltou a dizer que o Supremo “não está legalizando droga” e mantém o consumo “como um comportamento ilícito”, mas discute se o assunto deve ser considerado de natureza penal ou de natureza administrativa.
E disse que, caso o Supremo forme maioria no sentido de entender que não há crime no porte de maconha, não haveria punição de prestação de serviços à comunidade. “Nós entendemos que o usuário pode necessitar de tratamento, mas não de uma pena de natureza corporal como a prestação de serviços à comunidade”, afirmou Barroso.
O ministro André Mendonça interrompeu e disse que o STF avança sobre o que foi legislado pelo Congresso caso transforme a posse em ilícito administrativo. E questionou: “Quem vai fiscalizar? Quem vai processar? Quem vai condenar?”.
Alexandre de Moraes também se manifestou. Afirmou que o tribunal estava discutindo a diferenciação entre usuário e traficante e se o usuário comete ilícito penal ou administrativo e disse que o Supremo “tem que assumir que está discutindo essas duas questões”.
Até o momento, há cinco votos a favor da descriminalização do porte de maconha para uso pessoal: de Barroso, Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber (já aposentada) e Gilmar Mendes. Há também três votos contra a descriminalização, proferidos pelos ministros Cristiano Zanin, André Mendonça e Kassio Nunes Marques.
Na quinta, o ministro Dias Toffoli abriu um terceiro entendimento e interpretou que a legislação que trata do assunto é constitucional e não criminaliza o usuário. Também defendeu que a sanção administrativa deve ser analisada pela vara criminal.
Existem diferenças, porém, a respeito do limite que pode configurar uso pessoal. Quatro ministros (Gilmar, Moraes, Barroso e Rosa) fixam a quantidade de 60 gramas ou seis plantas fêmeas para diferenciar usuário e traficante. Já Fachin afirmou que cabe ao Congresso definir a quantia que diferencia usuário e traficante. Para Dias Toffoli, a Anvisa deve definir os parâmetros em até 18 meses.
Para o advogado Renato Vieira, presidente do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), o tema adquiriu uma complexidade ainda maior nas discussões do Supremo “quando o Senado começou com a presepada de propor uma emenda à Constituição”. Vieira diz que a discussão de fundo é a constitucionalidade do artigo 28 e que o tema saiu dos eixos “porque o Supremo não está enfrentando a matéria de frente, salvo os cinco ministros que trataram disso”.
“O voto de Toffoli tem passagens memoráveis sobre distinção de usuários e traficantes e despenalização, mas no final desandou porque o ministro assumiu uma postura que não é convincente, de que o artigo 28 não é um tipo penal”, afirma.
Vieira diz que Toffoli, se prevalecer, vai transferir uma parte importante do tema novamente para o Congresso.
A criminalista Cecilia Mello afirma que o ponto central do julgamento “é a fixação de um limite que diferencie a quantidade para uso pessoal e o volume que caracterize a traficância, considerando que a lei não estabeleceu esses parâmetros”.
“Essa ausência de definição de limites propicia a adoção de entendimentos díspares pela polícia, Ministério Público e Poder Judiciário, de maneira que situações semelhantes são processadas e julgadas de forma diferente”, diz.
Outro criminalista, Fernando Hideo, destaca que “caso se entenda pela inconstitucionalidade da criminalização da posse de droga para consumo próprio, passará a ser uma infração administrativa e não mais criminal”.
O julgamento do processo será retomado na próxima terça-feira (25) no Supremo.
No Legislativo, a iniciativa da PEC das Drogas foi do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em reação à discussão do tema no STF. Após aprovação na CCJ da Câmara, cabe agora ao presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), designar uma comissão especial para analisar o mérito do texto —há um prazo de 40 sessões para a votação.
Lira já afirmou que o trâmite da PEC será o regimental. Parlamentares da oposição dizem, sob reserva, que o alagoano não deverá dar celeridade no andamento por ser uma proposta de autoria de Pacheco. Os dois mantêm relação protocolar e divergem sobre a tramitação de propostas no Legislativo.
Além disso, o presidente da Câmara reconheceu a aliados que sofreu muito desgaste ao acelerar a tramitação do PL Antiaborto por Estupro e indicou um freio nos projetos considerados polêmicos. O objetivo dele agora é, até o início do recesso parlamentar —começa oficialmente em 18 de julho—, focar esforços para aprovar a regulamentação da reforma tributária.