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A fragrância da memória: a emotiva conexão entre perfumes e lembranças, inspirada por um frasco na Casa de Vidro de Lina Bo Bardi.




Artigo Perfumado: Memórias Olfativas

Artigo Perfumado: Memórias Olfativas

Se eu pudesse, isto aqui não seria crônica de jornal, mas uma carta perfumada passada por baixo da porta. Um lencinho que, ao cair leve e sonso, deflagrasse um quê inebriante de flerte com o que guardamos de mais delicado.

O jeito, então, é me safar com este relato forçosamente inodoro, tendo a convicção de que palavras guardam uma fragrância própria, sempre muito bem fixada por memórias. E de que vocês pegarão no ar tudo o que senti ao avistar aquele diminuto frasco por entre os pertences de Lina Bo Bardi em sua Casa de Vidro: o mesmo perfume da minha mãe.

Bastou um segundo para que nariz e cérebro se alinhassem, colocando essas duas mulheres na mesma família olfativa. Suaves traços de lírio do vale, jasmim e ylang-ylang conectando a matriarca que sonhou estudar arquitetura à minha arquiteta favorita. Emoção e imaginação borrifando a cena de uma dando aulas de matemática na rede pública, enquanto a outra projetava o Sesc Pompeia.

Feito uma bibliotecária de odores, abri gavetinhas contíguas de um vasto catálogo naso-afetivo. Ao contrário das imagens, sempre meio borradas, primeiros cheiros me restaram nítidos: o amaciante de rosas no lençol do berço, o pó de arroz na maquiagem das tias que vinham apertar bochechas, a loção do avô me pegando no colo. E assim, percebi que a ciência da perfumaria tem um duplo sentido comovente ao usar as chamadas “notas de cabeça” e “de coração” em seus acordes sensoriais.

A partir dessa pirâmide nostálgica de eflúvios, saí farejando mais lembranças. Pinho: férias de 1997 em Campos do Jordão. Almíscar: vizinha de porta dando bom dia e mandando o pequinês parar de latir. Alfazema: meu caminho de casa até a escola, pontuado pela emanação deliciosa de tinta automotiva vindo da oficina mecânica. Verbena: uma noite com mala extraviada em Budapeste. Lavanda: a oferenda floral que fiz para o amigo Paulo Vieira perto da casa do Van Gogh.

Zimbro e junípero: uma sequência de namorados que não cheirava nada bem, não por serem boys lixo, mas por banharem-se na mesma e terrível água de colônia. Camomila: um pedido de casamento e um filho. Limão e néroli: meu próprio aroma da paz.

Cada um de nós conserva sua essência, mas após a inspiração que foi aquele vidrinho de L’Eau de Lina Bo, me percebi atenta ao frescor de certos esquecimentos. Instada a cafungar mais ternuras, menos miasmas cotidianos. Em busca de uma vida mais perfumosa e menos perfunctória, por assim dizer. Torcendo para que rinite alguma acabe com esse respiro.

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