
Brasil é um dos cinco piores países para jovens”, noticiou o Jornal Nacional em 11 de novembro de 2015, uma quarta-feira. A reportagem trazia dados da pesquisa Youthonomics, divulgada havia poucos dias, que punha o país na 54ª posição entre 64 países no quesito bem-estar social da juventude.
Uma das poucas coisas de que Felipe* lembra daquela noite é de ter assistido à tevê enquanto comia manga. Ele também se recorda de estar com amigos na calçada na frente de sua casa, no Curió, bairro da periferia de Fortaleza. Ao notar que já era tarde, orientou um deles a ir embora, porque não é uma área segura à noite. “Falei: ‘vai seguindo pra casa, já tá ficando tarde.’” Depois disso, só se lembra de ter acordado no hospital, dias depois, ainda com gosto de manga na boca.
Naquela madrugada, Felipe, na época com 21 anos, foi atingido por ao menos oito tiros disparados pela polícia, na maior chacina policial da história do Ceará. Apesar dos ferimentos graves, ele sobreviveu. Ao todo, onze pessoas morreram e sete ficaram feridas. A ação foi promovida por um grupo de policiais em resposta à morte do soldado Valtemberg Chaves Serpa, que fora vítima de um latrocínio horas antes, naquela região da cidade. A agressividade dos ataques deixou claro não se tratar de uma operação policial, e sim de uma vingança indiscriminada contra os moradores dali. O caso ficou conhecido como Chacina do Curió. Das onze pessoas mortas pela polícia, seis eram menores de idade.
Ainda em 2016, o Ministério Público do Ceará acusou 45 policiais por envolvimento com a chacina. A Justiça aceitou a denúncia contra 34 deles, afirmando que não havia provas robustas contra os outros dez acusados. O processo tramitou lentamente até que, passados quase oito anos do crime, os militares foram levados ao banco dos réus em junho deste ano. De lá para cá, um dos réus morreu num assalto e outros três conseguiram a prerrogativa de serem julgados pela Justiça Militar, de modo que sobraram trinta réus. Todos serão submetidos a júri popular, num julgamento que ainda está em curso no Tribunal de Justiça do Ceará e deve se encerrar só no ano que vem. É o processo judicial com maior número de militares no banco dos réus desde o Massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 1996, no Pará, quando dezenove pessoas foram mortas e, sete anos mais tarde, 155 policiais foram levados a julgamento. Só dois acabaram condenados.
O julgamento da Chacina do Curió, embora ainda esteja em andamento, caminha para um desfecho diferente. Dos trinta militares, cinco já foram condenados por homicídio, e um por tortura. Outros dez ainda vão ser julgados. O julgamento foi influenciado pela pressão dos familiares das vítimas – mais especificamente, de suas mães.
Felipe só soube da morte do policial Valtemberg Serpa quando foi prestar depoimento, em janeiro de 2016, dois meses após a chacina. Alheio ao motivo que havia levado os militares a abrir fogo em Curió, ele foi gravemente ferido. Perdeu metade do pulmão direito e, desde então, não movimenta bem o braço esquerdo, sequela que lhe custou a profissão de serigrafista. Traumatizado, mudou de endereço várias vezes e tornou-se uma pessoa reclusa.
“Perdi quatro anos da minha vida sem fazer nada. Só dentro de casa, com medo de sair na rua”, ele conta. Naquela noite, Felipe foi socorrido por familiares que estavam em casa, já que as ambulâncias não atenderam ao chamado. Quatro anos se passaram até que Felipe tivesse coragem de tocar no assunto. “Fiquei calado por muito tempo, não aparecia, não participava de movimentos, nada do tipo. Mas comecei a ver que era necessário contar o que eu passei. Era uma prova, não necessariamente para a Justiça, mas para o povo, pra evitar que aconteça de novo com outras pessoas.”
O encorajamento veio, em boa medida, do Movimento Mães do Curió. O grupo, fundado em 2016, começou pequeno. Muitas mães, afetadas pelo luto ou temendo possíveis retaliações, preferiam não se envolver. Mas, conforme o movimento ia ganhando tração e visibilidade, o grupo conquistou adeptas. “A maioria dessas mães não se conhecia. Elas se conheceram pela tragédia e pela fatalidade”, conta Mara Carneiro, coordenadora-geral do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) do Ceará, organização da sociedade civil que acompanha e auxilia as mães do Curió desde 2016.
Com apoio do Cedeca, as mães passaram a se reunir periodicamente. Fizeram cursos sobre direitos humanos e medidas de autocuidado, enquanto acompanhavam passo a passo as investigações que corriam no Ministério Público. Organizadas e informadas, cobraram agilidade da Justiça e políticas de atendimento psicológico às famílias das vítimas.
A Defensoria Pública do Ceará criou, em resposta a elas, o Programa de Atenção Integral às Vítimas de Violência da Defensoria, mais conhecido como Rede Acolhe. Edna Carla Souza, de 52 anos, diz que depois da morte do filho Álef Cavalcante Souza, de 17 anos, perdeu a vaidade e passou muito tempo deprimida. Recuperou a energia ao entrar em contato com outras mães que passavam pelo mesmo trauma. “A autoestima é uma ferramenta muito poderosa. Criei o dia da beleza no Movimento Mães da Periferia e me maquiei, percebi que a gente tem que se valorizar”, diz Souza, que trabalha como cuidadora de idosos. “Enterrei o