O trabalho do professor sempre esteve sob os olhares de alunos, pais e gestores escolares, mas essa vigilância tem aumentado nos últimos anos. Câmeras, plataformas digitais, avaliações externas, promessas de bônus atrelado ao cumprimento de metas são adotados para controlar o que acontece nas salas de aulas, com o argumento de alcançar melhores resultados ou coibir uma suposta doutrinação.
A preocupação com a crescente perseguição ao trabalho dos professores levou o Ministério da Educação a criar e financiar o Observatório Nacional da Violência Contra Educadores para fazer uma pesquisa nacional sobre as formas de violência contra a liberdade de aprender e ensinar no Brasil.
“A gente vê hoje no país diferentes tentativas de controle do trabalho pedagógico. Uma é mais institucional, vigia e controla o professor por meio de plataformas, metas e avaliações. A outra, menos oficial, se caracteriza pela perseguição ideológica e política com a tentativa de censurar a abordagem de algumas temáticas em sala de aula”, explica Fernando Penna, coordenador do observatório.
Ele afirma que já há muitos anos os governos usam estratégias para restringir a autonomia do professor, mas avalia que o avanço da tecnologia acirrou a vigilância do que é feito em sala de aula.
Para Andreza Barbosa, professora da PUC-Campinas, o controle sobre o que os professores devem ensinar acabou sendo naturalizado no país por meio do sistema de bônus.
Essa política, que premia o professor pelo desempenho de estudantes nas avaliações externas, por exemplo, está presente na maioria dos estados e em diversas cidades brasileiras apesar de estudos nacionais e internacionais apontarem que o sistema é ineficaz para melhorar a qualidade do ensino.
Um relatório de 2017 da Unesco, órgão da ONU para educação e cultura, concluiu que o sistema de bonificação desconsidera os diversos fatores do processo educacional e provoca restrição do que é ensinado, já que os professores são estimulados a concentrar o conteúdo das aulas no que é cobrado nas avaliações.
“A bonificação acabou sendo a primeira etapa desse controle mais formal. É uma estratégia que parte de uma concepção equivocada de que seria possível aferir a qualidade do professor pelo desempenho do aluno em uma prova”, afirma Barbosa.
Para ela, a recente adoção de aplicativos e plataformas digitais dentro da sala de aula incrementa a tentativa de controle, já que leva o professor a trabalhar conteúdos preestabelecidos em vez de ensinar da forma que considera ser mais adequada para seus alunos.
“É um controle até mais duro, porque engessa a aula e obriga todos os professores a trabalharem dentro da mesma plataforma. Não considera que os alunos, as turmas e as escolas têm necessidades e contextos diferentes.”
Diversas redes públicas de ensino do país passaram a lançar mão de plataformas digitais nos últimos anos, e São Paulo e Paraná são os estados que mais se destacam nessa estratégia. Nessas duas redes estaduais, os professores precisam garantir que os alunos usem aplicativos para atividades escolares, como redação, leitura de livros e exercícios.
Apesar de as secretarias informarem que o uso dos aplicativos fica a critério dos professores, a frequência de acessos tem sido controlada e os profissionais são cobrados a dar explicações quando há baixa adesão dos alunos.
“Tem sido muito desgastante, porque não sobra mais tempo para dar a aula tradicional”, relata Jane de Almeida, 48, professora de português em uma escola estadual de Guarapuava (PR).
Ela conta ainda que os alunos encontraram formas de driblar a tecnologia. Na sua disciplina, por exemplo, eles precisam cumprir um número de redações escritas no aplicativo.
“Eles descobriram que podem escrever qualquer coisa que a redação vai aparecer como feita, então repetem palavras até completar o limite exigido ou copiam e colam qualquer texto que encontram. Desse jeito, eles garantem a participação, a escola bate a meta de uso, mas o que eles estão aprendendo? É um faz de conta.”
Flavia Rosa, 39, professora de sociologia em uma escola estadual na Brasilândia, zona norte da capital paulista, também questiona a efetividade do uso dos aplicativos para a qualidade do ensino. “Os alunos não veem sentido no que estão fazendo e ficam desmotivados. Por mais inusitado que pareça, os alunos pedem que os professores deem aula da maneira tradicional porque estão cansados dos aplicativos.”
Em nota, a Secretaria de Educação de São Paulo declara que as plataformas têm como objetivo “aprimorar as habilidades dos estudante e os índices educacionais da rede”. Também afirma que os professores decidem como utilizá-las e que o uso recomendado não deve ultrapassar 15% do tempo de aula do estudante ao longo da semana.
Procurada, a Secretaria de Educação do Paraná não respondeu até a publicação.
Para Penna, o controle da atividade docente sob o argumento de melhoria nos resultados educacionais ganha força dentro de um contexto maior de desvalorização do professor e da educação.
“Em vez de olhar para as más condições de trabalho, os salários baixos, a falta de infraestrutura nas escolas, excesso de alunos, os governos apostam no controle do que é ensinado. Isso passa a mensagem de que o professor não sabe fazer bem o seu trabalho, de que não sabe o que ensinar e, por isso, precisa ser minuciosamente controlado.”
Para os especialistas, a desvalorização do conhecimento e da autonomia do professor repercutem na sociedade e dão espaço para grupos políticos que atacam os educadores, como o caso do Escola sem Partido e outras iniciativas mais recentes.
“Defender a liberdade do professor não é corporativismo, é defender o direito de educação do aluno. Um exemplo grave é a acusação da ideologia de gênero nas escolas, essa perseguição fez com que muitos professores deixassem de ensinar educação sexual que poderia proteger muitas crianças e adolescentes de situações de abuso”, diz Penna.
Os resultados da pesquisa do observatório devem ser usados pelo MEC para formular uma política nacional em defesa da educação democrática. Uma das ações deve ser a incorporação de denúncias de ataques contra professores no índice do Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos.