A utopia da paz perpétua em risco: redes sociais alimentam fanatismo e crueldade virtual, enquanto pacto sobre Inteligência Artificial é anunciado pela ONU

“Reinaldo, mas por que as redes não se transformaram na ágora de uma democracia que muitos diriam ser a ‘verdadeira’, numa planetária ‘cidade exata, clara, aberta’, como escreveu um grande poeta?” Ah, minha gente… Creio que pelos mesmos motivos, e não vou aqui resumir a história da humanidade, que ainda não se inventou a convivência humana sem Estado — ou sem seu correspondente, em sociedades tribais, que é a autoridade religiosa. No primeiro caso, o ente estatal guarda e aplica as leis; no segundo, aquele que fala em nome de crenças e mitos fundantes guarda e presentifica os arcanos. Umas e outros, leis e arcanos, exercem o controle social por meio da imposição de limites aos apetites. Sem freios, eles predispõem para a crueldade.

Atenção para isto: “Ter feito a alguém um mal maior do que se pode ou se está disposto a sofrer inclina quem praticou a odiar quem sofreu o mal, pois só se pode esperar vingança ou perdão, e ambos são odiosos”. É Thomas Hobbes no “Leviatã”. Aí está a gênese psicossocial do fanatismo, que as redes alimentam por meio dos algoritmos. Os que cultivam as mesmas vontades compõem as “bolhas de crueldade” sem limites, as milícias virtuais. Par elas, inexiste a condescendência respeitosa, que é civilizadora, com crianças, idosos ou deserdados, por exemplo. Ao contrário: a vulnerabilidade dos fracos “excita a fúria do algoz”, como escreveu outro poeta.

Ou bem nos damos conta de que, nessa toada, pode-se perder mais do que a democracia, e nos afundamos na guerra de todos contra todos, ou buscamos saídas. Se damos por impossível a “paz perpétua” kantiana como algo a se realizar amanhã, descartá-la como uma das formas de cultivar o bem — e, pois, como uma inspiração a orientar a nossa prática e as nossas decisões — corresponde a escolher a sociedade em que triunfa a fúria dos algozes.

ACORDO SOBRE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
O sempre excelente Jamil Chade informa no UOL:
“Pela primeira vez, governos se unem para tentar estabelecer padrões éticos e de direitos humanos sobre o desenvolvimento da Inteligência Artificial e fechar o cerco em relação às plataformas digitais. Negociadores confirmaram que o pacto foi concluído, depois de quatro anos de reuniões e um intenso processo de diálogo.
O acordo deve ser oficialmente anunciado neste domingo (22), e os 193 países da ONU concordarão em criar um órgão internacional para examinar o desenvolvimento da IA. Segundo diplomatas, apenas uma ‘surpresa’ evitaria sua adoção.
O texto do acordo, obtido pelo UOL, indica uma ofensiva inédita diante da proliferação do uso da nova tecnologia e que é considerada por muitos como a arma de uma nova era e uma ameaça para a estabilidade internacional e democracia.
O texto depende de um consenso entre os 193 países em todos os temas, inclusive reforma da ONU, clima e outros aspectos do que está sendo chamado de Pacto do Futuro.
Pelo documento, fica estabelecido a criação na ONU de um Painel Científico Internacional Independente multidisciplinar sobre IA, com representação geográfica equilibrada. Seu objetivo: ‘promover a compreensão científica por meio de avaliações de impacto, risco e oportunidades” da nova tecnologia’.”

A ideia de se criar um ente internacional que possa examinar o desenvolvimento da Inteligência Artificial — e não são poucos os especialistas pessimistas sobre o nosso futuro; o da humanidade mesmo… — explicita, no fim das contas, o receio de que a distopia da tirania universal ocupe o lugar da utopia da paz perpétua. Se esta, por irrealizável, pôde nos inspirar, ao menos, como um “dever ser”, a outra, factível, deixou de se manifestar apenas como um pesadelo e, em muitos aspectos, já está entre nós. Em vez da “ágora da cidade exata, clara e aberta”, o que já se vê é a eclosão de ódios, paixões destrutivas e impulsos predatórios.

COMEÇANDO A VOLTAR A MORAES E À X
O conflito da “big tech” X com o STF, que o personalista Musk personalizou em Alexandre de Moraes — prática infelizmente adotada por setores da imprensa –, é, hoje, único no mundo, dada a virulência com que o multibilionário investiu não apenas contra o ministro, mas contra o tribunal. Cumpre notar que o norte a orientar as decisões do ministro, endossadas pelo Tribunal ou pela Primeira Turma, não se situa no campo da especulação, vamos dizer, civilizatória, de que trato aqui.

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