Hoje faz 10 anos que meu pai morreu. Há quem diga que parece que foi ontem. Discordo. Se ontem fosse, seriam apenas 24h. Não essa lonjura concreta e cortante de 87 mil horas na camada mais profunda da pele.
São dez anos de uma distância que caminha no submerso de mim: inalcançável e desesperadora. Enlouquecedora e sem fim. São dez anos sem abraçar o Tiãozão, sem ouvir sua reza a São Jorge, sem ver seus novos cabelos e bigodes grisalhos.
No sexto aniversário de morte, eu fiz este poema para homenageá-lo:
A morte-viva que carrego em mim
Faz dez anos
Uma pilastra extensa
Caiu no quintal
Espalhou
Mais cortante
Que mil espelhos
Perfura, funda,
O corpo-casa
De quem ficou
Faz dez anos
Uma mancha
No pulmão, no rim
É diabetes descompensada
Avisou o médico
Corredor gelado
Hospital abandonado
Alguém ajuda meu pai?
Alguém me ajuda?
Eu sou muita nova para…
Faz dez anos
Vinte dias
Três Hospitais
33 km de casa
36 km de casa
Dois pronto-socorros
Mil horas-corredor
Vinte dias
Copa de 2014
Vuvuzela fora
Medo dentro
A perna parou
O braço parou
Eu cantava samba
Eu invadia a sombra
Sentada na poltrona dura
Queria habitar o inconsciente
Morto
Fazer nascer desse sono estúpido
O resto todo parede
Parede imunda
Surda ao meu pedido
Aquário de fazer loucos
Aquário de fazer loucos
Aquário de fazer loucos
Eu tão microscópica
Eu tão alagada em solidão
Dois de julho
Cutucada nas costas
Onze horas manhã de sol
Morri
Morri
Morri
Morri
Morri
Morri
Faz dez anos
Casa alargada
Cômodos
Galpões cheios de vazio
A casa
Tentando se sustentar em suas velhas vigas coberta por suas velhas telhas
no seu velho quintal
A pilastra que nunca mais se reergueu
A morte-viva que carrego em mim
Pai
Na terapia, reconstruí o pai de todas as formas possíveis. Com os pedaços que tinha, criei uma infância ao Tião criança vendendo amendoim na sala de casa: a única da vila com TV. Com as lembranças dos tios e das fotos em preto e branco, inventei viagens de guidão por estradas sinuosas cheias de cruzes e livramentos.
Com os causos contados à beira do muro da casa azul, criei um malandro-pai: pilastra firme me segurando na beirada, onde ninguém poderia derrubar. Revisitei seus medos, angústias, solidão, cansaço e tanto mais que nunca disseram apenas sobre ele, mas sobre a orfã de pai que eu havia me tornado e sempre vou ser.
Viver é a melhor forma que encontrei de humanizar esse luto: rindo, chorando, abraçando a dor com todas as suas camadas. Mas também buscando amor, muito amor, dentro de cada coisa e dentro de mim.
Precisei viver muito nesses dez anos, principalmente para conviver com essa “ridícula ideia de nunca mais te ver”. Essa frase, aliás, é o nome de um dos meus livros favoritos sobre luto, escrito pela espanhola Rosa Montero:
“Como não tive filhos, a coisa mais importante que me aconteceu na vida foram os meus mortos, e com isso me refiro à morte dos meus entes queridos. Talvez você ache isso lúgubre, mórbido. Eu não vejo assim. Muito pelo contrário: para mim é uma coisa tão lógica, tão natural, tão certa. Apenas nos nascimentos e nas mortes é que saímos do tempo”.
Enlutados: sinto muito, mas a saudade não passa. Há felicidade na tristeza, há dor na alegria, mas não passa. Só piora. Sinto falta de usar a palavra pai e todos seus complementos: paiê, paizinho, paizão, papishow. E sinto falta de ouvir a voz dele me chamando de filha.
Eu te amo tanto, que nem essas milhões de horas são capazes de diminuir isso aqui dentro. Chego aos 33 anos, sendo 10 deles em luto. Serão todos os outros também em luto. A bença pai.