Essa missão começou há quase 20 anos, quando Silvia foi convidada a levar seus alunos para atender na Penitenciária Feminina de Campinas. Na ocasião, ela questionou o motivo do pedido de ajuda à universidade e ficou sabendo da dificuldade em preencher vagas no presídio, já que muitos profissionais se recusavam a trabalhar lá. Foi então que ela decidiu que era o momento de agir.
O projeto foi ampliado e se tornou o programa de estágio de atenção a populações negligenciadas, que atualmente é coordenado por Silvia. Hoje em dia, ele inclui atendimento na penitenciária, na Fundação Casa (para menores infratores) e no Consultório na Rua, que é voltado para pessoas em situação de rua. Segundo a médica, os alunos consideram esse o melhor estágio da faculdade.
Os casos atendidos são considerados difíceis, pois, em geral, os pacientes tiveram poucas oportunidades ao longo da vida para tratar da saúde. De acordo com a docente, os problemas mais frequentes estão relacionados à saúde mental. A angústia e a depressão por estarem longe da família pioram o quadro de outras doenças, como hipertensão e diabetes.
Apesar dos desafios, Silvia destaca que vê o esforço dos alunos em oferecer o melhor tratamento possível. Os pacientes também expressam o quanto gostam de ser atendidos pela turma, que demonstra interesse e preocupação pela história e pelo quadro clínico de cada um deles.
A docente ressalta que há benefícios para todos os envolvidos nesse trabalho. Ela afirma que o atendimento nesses espaços contribui para uma formação mais humanizada em medicina na universidade. Além disso, as instituições se tornam mais acolhedoras ao abrir suas portas para a sociedade através da presença dos estudantes.
Silvia Santiago também é chefe da Diretoria Executiva de Direitos Humanos da Unicamp, responsável por diversas ações sociais realizadas na universidade. Entre as iniciativas desenvolvidas pelo grupo estão o atendimento a vítimas de violência sexual e o apoio a estudantes pertencentes a grupos vulneráveis, como indígenas e refugiados.
A atuação da médica com populações negligenciadas ocorre desde o início de sua carreira, nos anos 1980. Ela fez residência na Santa Casa de Misericórdia de Campinas, uma das principais formas de acesso à saúde para aqueles que não possuíam recursos na época.
Silvia, que tem origem pobre, sempre quis trabalhar no setor público porque acredita que a atenção à saúde é um direito. Ela lembra que, desde a infância, era fascinada pela medicina e tinha curiosidade sobre as perguntas do médico e os objetos encontrados nos consultórios. Uma enfermeira obstétrica do bairro onde morava também influenciou sua escolha pela carreira médica.
A médica estudou em uma escola pública que considerava excelente, o que possibilitou sua entrada na universidade. No entanto, a permanência na instituição era desafiadora, principalmente em uma época em que havia poucos programas de apoio financeiro aos alunos. Para se manter em Campinas, ela trabalhava meio período dando aulas particulares enquanto estudava.
Segundo Silvia, quando ingressou na universidade, sua família ficou desconfiada. Além das dificuldades financeiras, eles temiam que ela sofresse discriminação em um ambiente em que só havia pessoas brancas. Ela foi a única negra em sua turma de medicina.
Estar em menor número fez com que as pessoas negras passassem por um processo de “branqueamento”. Com isso, elas perdem a perspectiva das demandas da própria população. Silvia considera que esse processo foi uma das maiores agressões que ela sofreu.
As cotas representaram uma mudança nesse cenário. Hoje, coletivos se reúnem para discutir e defender pautas de alunos negros na universidade. A presença de mais estudantes pretos e pardos ajuda a contribuir com as comunidades de onde vieram. Isso enriquece o curso de medicina, pois esses alunos trazem questões relacionadas às doenças mais frequentes na população negra e querem saber como as doenças em geral afetam as pessoas negras. Essa diversidade é uma expansão para a faculdade e uma adequação aos cuidados da população brasileira, uma vez que metade dos cidadãos brasileiros são negros ou pardos.