Trinta anos depois de sua atuação em “Mulheres de Areia”, o ator Marcos Frota, conhecido por interpretar o personagem Tonho da Lua, ainda é reconhecido pelo papel que desempenhou. O jovem carismático com deficiência intelectual, que esculpia estátuas na praia, se tornou um ícone da teledramaturgia nacional, abrindo caminho para questionar a imagem tradicional do “louco” no Brasil, em um momento em que a reforma psiquiátrica estava ganhando força no país.
Reprisada pela Globo desde junho, a novela foi um remake da versão original produzida pela TV Tupi em 1973, ambas escritas por Ivani Ribeiro. No entanto, enquanto na primeira versão o escultor é “curado” de sua deficiência, na segunda ele descobre que não precisa ser curado, mas sim incluído na sociedade como é.
Essa abordagem estava em linha com os debates que surgiram no Brasil entre as décadas de 1980 e 2000. Paulo Amarante, professor da Fiocruz e pioneiro nesse movimento, destaca progressos importantes nesse período, como a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) no final dos anos 80 e o aumento da resistência à estigmatização da loucura e ao confinamento em massa de populações marginalizadas.
Na época da produção da novela, os manicômios estavam começando a ser fechados e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) estavam surgindo nas cidades, como São Paulo e Santos.
Tais transformações culminaram na Lei da Reforma Psiquiátrica, aprovada em 2001, que introduziu novos modelos de cuidado em saúde mental no Brasil. Ao mesmo tempo, a deficiência intelectual começou a perder seu status de doença na sociedade, com debates crescentes sobre inclusão. Projetos artísticos e culturais também começaram a abrir espaço para a integração de indivíduos que antes seriam considerados loucos e excluídos socialmente.
Tonho da Lua encontrou seu lugar na arte, lembra Solange Castro Neves, coautora da última edição de “Mulheres de Areia”. No final da novela, o artesão parte com um circo, conquistando assim autonomia e liberdade. Neves conta que ela e Ivani Ribeiro receberam orientações de um psiquiatra e uma psicóloga durante a criação do personagem, que enfrenta preconceito, mas também encontra apoio na pequena cidade de Pontal D’Areia, onde a história se passa.
O diretor da novela, Wolf Maia, afirma ter trabalhado para construir um Tonho da Lua sensível e autêntico, garantindo empatia e afeto do público. Marcos Frota percebeu o resultado nas ruas, com pessoas com deficiência se sentindo representadas e mães de crianças autistas o abordando para conversar.
Embora Tonho da Lua refletisse os debates sobre inclusão e estigma da época, a equipe da novela não tinha uma estratégia explícita de abordar essas questões diretamente. Abordagens mais direcionadas só ganharam força anos depois, influenciadas pelas campanhas socioeducativas da escritora Glória Perez, que costuma incluir temas de interesse público em suas tramas.
Em “Caminho das Índias” (2009), por exemplo, Perez abordou a esquizofrenia através do personagem Tarso Cadore (Bruno Gagliasso), que tem o transtorno. Paulo Amarante foi consultor da novela e conta ter orientado Perez a conhecer projetos culturais inclusivos relacionados à saúde mental.
“No modelo socioeconômico atual, há pouco espaço para aqueles que não se encaixam na normalidade estabelecida pelo sistema. É necessário criar campos alternativos de criação e socialização para todos”, afirma o professor. Segundo Amarante, as orientações foram seguidas pela autora e Tarso termina a novela explorando seu potencial artístico em um projeto sociocultural de uma clínica.
Outros exemplos que abordaram transtornos mentais e deficiência intelectual surgiram posteriormente, como a dislexia em “Duas Caras” (2007) de Agnaldo Silva e o autismo em “Éramos Seis” (2019) de Ângela Chaves.
No entanto, mesmo com o crescimento das campanhas de combate ao estigma, ainda persistem estereótipos antigos, como o vilão perverso que é internado em um hospício no último capítulo. “Muitas vezes a novela simplifica uma história complexa, que se desenrola ao longo de meses, e a reduz a uma resposta superficial e elementar: a de que o sujeito é louco”, destaca o professor.
Maria Amélia Paiva Abrão, pesquisadora do Centro de Estudos de Telenovela da Universidade de São Paulo (CETVN ECA-USP), acrescenta que a associação entre mulher e loucura ainda é frequente nas narrativas, apesar de ter diminuído nos últimos anos com os debates de gênero. A representação de personagens femininas como “loucas”, excessivamente ciumentas, desequilibradas ou histéricas ainda é comum nos roteiros e permeia o imaginário popular. Os especialistas acreditam que isso só será superado com a dissolução de estruturas sociais como o machismo. E, para que isso aconteça, é necessário que a vida inspire a arte e a arte inspire a vida.